A suspensão dos "chips da beleza" pela Anvisa levanta uma reflexão sobre a crise moral da medicina moderna e a interferência excessiva dos conselhos superiores na relação médico-paciente, questionando até que ponto há uma verdadeira vitória na imposição de proibições.
Na sexta-feira, 18 de outubro, a Anvisa decretou a suspensão da manipulação, comercialização e propaganda dos chamados "chips da beleza" – implantes hormonais manipulados que, nos últimos anos, tornaram-se populares no Brasil para fins estéticos e para tratar sintomas da menstruação e menopausa. Sob o pretexto de que esses implantes representam riscos à saúde e carecem de comprovação científica quanto à sua segurança e eficácia, a medida foi saudada como uma vitória por muitas entidades médicas e de regulação. Contudo, para além dos aspectos técnicos e regulatórios, cabe-nos refletir sobre o que essa situação revela acerca da relação médico-paciente e a crise moral da medicina moderna.
A Degradação da Autonomia Médico-Paciente
A princípio, poder-se-ia celebrar a suspensão dos implantes hormonais como um passo necessário para proteger a saúde pública e evitar o uso inadequado de terapias de risco. Entretanto, uma análise mais cuidadosa nos leva a questionar se estamos, de fato, diante de uma verdadeira vitória ou de mais uma medida sintomática da degradação da autonomia na relação médico-paciente. A quem pertence o direito de decidir sobre a própria saúde? E até onde é saudável que conselhos superiores interfiram na prática médica e na autonomia individual?
A decisão de suspender o uso do "chip da beleza" levanta, à superfície, a questão do péssimo estado em que se encontra a autonomia médica. Se o médico é aquele que, de posse do conhecimento científico e em diálogo com o paciente, avalia os riscos e benefícios de determinado tratamento, até que ponto entidades reguladoras e conselhos podem decidir por eles? Há muito, a medicina deixou de ser um ofício em que o discernimento é exercido em sua plenitude e passou a ser um campo rigidamente normatizado, no qual a autoridade do profissional se dilui diante das diretivas institucionais. Pode-se argumentar que isso é necessário para proteger o paciente de práticas perigosas, mas também se pode perguntar: tal intervenção não é uma prova cabal de que a ética e o discernimento dos médicos estão em ruínas, incapazes de sustentar a própria prática?
Os Riscos dos Chips da Beleza e o Fracasso da Orientação Médica
É indiscutível que os chamados "chips da beleza" possuem riscos consideráveis, e as evidências científicas acerca de seus benefícios são tímidas, quando não inexistentes. Mas a imposição de uma proibição – além de refletir uma tentativa de controlar os excessos – também sublinha o fracasso da própria comunidade médica em educar e orientar adequadamente os pacientes. A cultura de imediatismo e a obsessão com resultados rápidos – como a promessa de beleza e emagrecimento automático – não são um reflexo também do vazio moral e da futilidade que permeiam os tempos modernos?
Reflexão Sobre a Proibição: Vitória ou Decadência Ética?
A celebração de uma proibição como “vitória” deve ser acompanhada de uma reflexão profunda sobre o verdadeiro significado de tal medida. É um triunfo da medicina? Ou, na realidade, apenas mais um índice de nossa decadência ética? Não será essa decisão uma tentativa de substituir, por imposição normativa, aquilo que deveria ser o fruto de uma consciência moral e de uma relação bem estruturada entre médico e paciente?
A Crise do Sentido da Medicina
A crise é profunda e não diz respeito apenas à regulação dos tratamentos, mas ao próprio sentido da medicina. Se a medicina é, antes de tudo, uma ciência ao serviço do bem do paciente, ela deve prezar pela autonomia e pelo esclarecimento – e não pela imposição de regras que infantilizam o indivíduo, como se este não fosse capaz de compreender os riscos que corre. Nesse cenário, a figura do médico, que deveria ser o guia e o conselheiro daquele que procura uma solução para seu sofrimento, torna-se apenas mais um intermediário entre o paciente e as diretivas dos conselhos superiores. A relação médico-paciente, antes calcada na fé e na confiança mútua, é reduzida a um protocolo.
Conclusão
Portanto, antes de celebrarmos qualquer proibição, é imperativo questionar o que nos levou até aqui. Por que chegamos ao ponto de necessitar proibições tão contundentes? Por que a medicina, que deveria ser o campo do discernimento e da ciência aplicada ao bem particular do paciente, precisa ser tutelada como se seus profissionais não fossem capazes de discernir o certo do errado? Essas são perguntas que nos conduzem a uma reflexão mais ampla: sobre a crise moral de nossa sociedade, sobre a superficialidade de nossos valores e sobre a fragilidade das relações que estabelecemos – inclusive, e principalmente, aquelas que envolvem a saúde e o bem-estar.
A verdadeira medicina não é uma prática de mera aplicação de normas, mas sim uma arte que requer julgamento, empatia e uma profunda compreensão do ser humano em sua totalidade. Sem a reconstrução desses valores, continuaremos a assistir à intervenção de conselhos e órgãos reguladores, tratando sintomas de uma sociedade doente – e não a causa de sua enfermidade.
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