A causa das cãibras musculares ainda desafia a compreensão da ciência e do senso comum. Este artigo explora as principais teorias a esse respeito, destacando a complexa interação entre fadiga muscular, controle neuromuscular e desequilíbrios eletrolíticos.
Desde os primórdios do estudo da fisiologia, a compreensão das cãibras musculares — contraturas involuntárias, dolorosas e transitórias de um músculo ou parte dele — se mostrou um desafio complexo. Essas manifestações são tão comuns quanto intrigantes, acometendo tanto atletas quanto indivíduos sedentários, saudáveis ou acometidos por patologias. Sua etiologia e fisiopatologia permanecem, até os dias atuais, um campo de estudo cheio de lacunas e contestações.
A primeira hipótese para a ocorrência das cãibras, datada de 1908, foi desenvolvida a partir da observação de trabalhadores em minas e em ambientes de alta umidade e calor, que sofriam contraturas musculares devido ao estresse térmico e perda de eletrólitos. Esse fenômeno foi denominado "cãibra por calor" e, posteriormente, evoluiu para as hipóteses de "depleção de eletrólitos" e "desidratação". Tais explicações foram amplamente aceitas ao longo do século XX, em grande parte devido à associação entre sudorese excessiva e alterações nas concentrações de sódio e potássio no sangue. No entanto, estas hipóteses foram cada vez mais questionadas por não conseguirem explicar porque, muitas vezes, as cãibras ocorrem em músculos isolados sem alterações sistêmicas mensuráveis nos eletrólitos corporais [1, 2].
Nos últimos anos, a atenção da comunidade científica se voltou para uma hipótese mais complexa, que envolve o controle neuromuscular. Em 1997, Schwellnus propôs que as cãibras associadas ao exercício resultam de uma atividade reflexa espinhal anormal, amplificada por fadiga muscular. Essa hipótese sugere que a fadiga local do músculo provoca um aumento na atividade dos fúsos musculares — responsáveis pelo estímulo excitador — e uma redução da atividade dos órgãos tendinosos de Golgi, que normalmente inibem a contração muscular. Esse desequilíbrio reflexo gera uma hiperexcitabilidade dos motoneurônios alfa, levando à cãibra [2, 3].
A diferença fundamental entre as hipóteses clássicas (eletrólitos e desidratação) e a hipótese neuromuscular reside na perspectiva anatômica e fisiológica da origem do problema. Enquanto as primeiras buscam um gatilho sistêmico — seja a perda de líquidos ou eletrólitos —, a hipótese neuromuscular identifica a origem das cãibras em uma falha de controle local no nível da espinha dorsal e da unidade neuromotora. Estudos recentes, que examinam a atividade elétrica dos músculos durante as cãibras, mostraram que o aumento da atividade dos motoneurônios persiste mesmo entre os espasmos, sugerindo uma disfunção reflexa sustentada [4, 5].
Uma outra vertente relevante é a hipótese da origem periférica das cãibras, que propõe que estas resultam de disparos espontâneos das terminações dos axônios motores, possivelmente induzidos por alterações no volume ou na concentração de eletrólitos no fluido extracelular ao redor das placas motoras. Esse mecanismo parece ser desencadeado pela ação mecânica sobre as terminações nervosas durante o encurtamento muscular, o que pode explicar a propensão para as cãibras ocorrerem em músculos que se encontram em posições encurtadas [3].
Estudos clínicos e de campo, realizados em atletas de resistência, mostram que os fatores de risco mais associados à ocorrência das cãibras são a fadiga precoce do músculo, a intensidade elevada do exercício e a predisposição individual. Em maratonistas, por exemplo, é comum que as cãibras se manifestem nos estágios finais da corrida, especialmente quando a intensidade do esforço supera a capacidade de condicionamento do atleta [2, 4].
A despeito de todos os avanços na compreensão da fisiopatologia das cãibras, permanece a dificuldade em se chegar a um consenso definitivo sobre suas causas. Parece, de fato, que existem diferentes tipos de cãibras, desencadeados por mecanismos diversos, o que torna improvável que uma única estratégia preventiva ou terapêutica seja eficaz para todos os casos. O conhecimento atual sugere que intervenções que visem reduzir a fadiga muscular e otimizar o controle neuromuscular são as mais promissoras para mitigar a ocorrência das cãibras associadas ao exercício. Adicionalmente, medidas como o alongamento passivo durante os episódios agudos de cãibras se mostraram eficazes na redução da atividade elétrica dos músculos, provavelmente pela ativação dos órgãos tendinosos de Golgi e consequente inibição reflexa da contração [4, 5].
Assim, o estado da arte sobre a fisiopatologia das cãibras musculares revela um cenário multifatorial, onde causas centrais e periféricas interagem de modo complexo. A evolução das hipóteses ao longo dos anos, da simples depleção de eletrólitos ao sofisticado desequilíbrio neuromuscular, demonstra não apenas a complexidade intrínseca desse fenômeno, mas também a necessidade de uma abordagem integrada e multifacetada para sua compreensão e tratamento.
Referências
1. Schwellnus, M.P. et al. (2007). Muscle Cramping in the Marathon: Aetiology and Risk Factors. Sports Medicine, 37(4-5), 364-367.
2. Schwellnus, M.P., Derman, E.W., & Noakes, T.D. (1997). Aetiology of Skeletal Muscle 'Cramps' During Exercise: A Novel Hypothesis. Journal of Sports Sciences, 15(3), 277-285.
3. Minetto, M.A., Holobar, A., Botter, A., & Farina, D. (2013). Origin and Development of Muscle Cramps. Exercise and Sport Sciences Reviews, 41(1), 3-10.
4. Maughan, R.J., & Shirreffs, S.M. (2019). Muscle Cramping During Exercise: Causes, Solutions, and Questions Remaining. Sports Medicine, 49(Suppl 2), S115-S124.
5. Drew, N. (2006). Exercise-Associated Muscle Cramping (EAMC) in Ironman Triathletes. University of Cape Town.
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