Saiba quais são as evidências sobre o risco de suicídio e outros transtornos psiquiátricos associados aos agonistas do receptor de GLP-1, usados para diabetes e perda de peso.
Recentemente, cresceu a preocupação acerca dos riscos psiquiátricos relacionados ao uso de agonistas do receptor de GLP-1 (glucagon-like peptide-1), medicamentos amplamente utilizados no tratamento da diabetes tipo 2 e, mais recentemente, na gestão do peso. Dentre as complicações especuladas estão o aumento do risco de suicídio e de comportamento autolesivo, o que levou a uma investigação formal pela Agência Europeia de Medicamentos (EMA). Os recentes estudos de Ueda et al. e Wadden et al., publicados na JAMA Internal Medicine, tentam lançar luz sobre este tema complexo, mas, apesar de seus achados, as respostas ainda estão longe de serem definitivas.
Duas Metodologias, Um Mesmo Dilema
No centro da investigação, encontramos dois estudos distintos que se complementam e, simultaneamente, expõem as limitações metodológicas e as lacunas que ainda permeiam a discussão sobre a segurança psiquiátrica dos agonistas do receptor de GLP-1.
O estudo de Wadden et al. é uma análise pós-hoc dos dados agregados de quatro ensaios clínicos randomizados (STEP 1, 2, 3 e 5) que avaliaram o uso de semaglutida em indivíduos com obesidade, excluindo aqueles com transtornos psiquiátricos graves conhecidos. Embora seus resultados não demonstrem um aumento significativo nos sintomas depressivos ou na ideação suicida em comparação ao placebo, a análise apresenta limitações graves que comprometem sua validade. Primeiramente, a falta de um protocolo pré-especificado para a análise pós-hoc levanta preocupações quanto ao viés de seleção e ao risco de manipulação retrospectiva dos desfechos. Além disso, o controle insuficiente de confundidores, como o suporte social ou eventos estressantes de vida, reduz a credibilidade dos resultados apresentados. O fato de a análise ser patrocinada pela empresa fabricante da semaglutida, Novo Nordisk, também levanta questionamentos éticos e aponta para um possível conflito de interesses.
Por outro lado, Ueda et al. conduziram um estudo de coorte retrospectivo comparando os usuários de agonistas de GLP-1 aos usuários de inibidores de SGLT2, outra classe de medicamentos antidiabéticos. Utilizando dados de registros nacionais da Dinamarca e Suécia, os autores buscaram avaliar os desfechos de morte por suicídio, autolesão não fatal e transtornos de depressão e ansiedade. A metodologia do estudo é rigorosa, mas também apresenta limitações importantes: a baixa taxa de incidência dos eventos, que limita o poder estatístico, e a possibilidade de viés residual mesmo após os ajustes pelo escore de propensão. Além disso, a exclusão de alguns dados de pacientes em situações clínicas específicas compromete a generalização dos resultados.
Reflexões Sobre a Psicofarmacologia e Suas Limitações
A questão central que surge é se podemos, de fato, confiar que os agonistas do receptor de GLP-1 sejam seguros para indivíduos com histórico psiquiátrico significativo. Ambos os estudos falham em responder claramente a essa questão, especialmente porque os indivíduos mais vulneráveis — aqueles com depressão moderada ou grave — foram sistematicamente excluídos dos ensaios clínicos. O potencial efeito neuropsiquiátrico dos agonistas de GLP-1 é plausível, já que esses medicamentos atravessam a barreira hematoencefálica e atuam em receptores presentes no sistema nervoso central, o que poderia desencadear mudanças em circuitos associados ao humor e ao comportamento.
Outro ponto que merece atenção é o efeito bidirecional entre obesidade e depressão. A obesidade frequentemente leva ao estigma e à diminuição da qualidade de vida, contribuindo para o desenvolvimento de transtornos depressivos, enquanto a depressão pode promover o ganho de peso. Este ciclo complexo torna a avaliação da segurança psiquiátrica ainda mais desafiadora, pois é difícil determinar se os sintomas depressivos são consequência da condição basal dos pacientes ou se são exacerbados pelo tratamento.
Conclusão
Embora os estudos de Wadden et al. e Ueda et al. apresentem resultados tranquilizadores sobre a segurança psiquiátrica dos agonistas do receptor de GLP-1, as evidências estão longe de serem conclusivas. As limitações metodológicas de ambos os estudos sugerem que devemos ser cautelosos ao extrapolar esses achados para populações mais vulneráveis, especialmente aquelas com transtornos psiquiátricos preexistentes. O enigma da segurança psiquiátrica desses medicamentos persiste, e é fundamental que novos estudos, independentes e com poder estatístico robusto, sejam realizados para esclarecer essas questões pendentes.
É vital que os profissionais de saúde continuem vigilantes ao prescrever esses medicamentos, monitorando de perto a saúde mental dos pacientes, sobretudo aqueles com histórico de transtornos psiquiátricos. Somente assim poderemos garantir que os benefícios de intervenções para o controle do peso não sejam superados por riscos à saúde mental, especialmente em uma população já fragilizada pelo estigma e pelas consequências da obesidade.
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