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A Queda da Creatina?

Um estudo publicado recentemente, sob a liderança de uma das maiores referências mundiais sobre hipertrofia muscular, tirou conclusões que parecem colocar em xeque a unanimidade da eficácia da creatina na hipertrofia muscular. Como interpretar seus dados e como aplicar isso na prática clínica?


É consenso no mundo científico dizer que a suplementação com creatina (Cr-s) é um dos poucos recursos dietéticos ergogênicos realmente eficazes no aumento das adaptações dos treinos resitidos (TR - popularmente conhecido como "musculação"). As meta-análises que investigaram os efeitos combinados da Cr-s e TR são unânimes ao mostrar ganho extra de 1 a 1,4 Kg de massa magra em um período de 8 a 12 semanas quando comparado com placebo [1] [2] [3].


Tais dados são fidedignos e suas conclusões igualmente corretas levando em conta os métodos de análises empregados, como a Absorciometria bifotónica de raio-X (DXA, em inglês), considerado o "padrão-ouro" para a medição de massa magra [4], a hidrodensitometria, pletismografia por deslocamento de ar e a impedância bioelétrica. Com efeito, pode-se afirmar, com fortes evidências, que a Cr-s promove ganho de massa magra. Mas, apesar do abismo existente entre os parâmetros de massa magra e massa muscular, os dados obtidos por estes estudos são comumente extrapolados e interpretados como se a Cr-s indubitavelmente tivesse impacto significativo na hipertrofia muscular.


Por abarcar todos os tecidos livres de gordura, como a água, massa óssea e massa muscular, sabe-se que a massa magra não é a mais precisa das medidas na avaliação da composição corporal. E quando o mecanismo fisiológico da Cr-s é avaliado, observa-se um aumento da quantidade total de água corporal [5], e, por seu efeito como osmólito, acredita-se que a maioria desse efeito seja compartimentalizado intracelularmente [6]. Porém, algumas evidências sugerem que parte dos ganhos de massa magra relacionados a Cr-s seja atribuída a retenção líquida extracelular [7].


Aqui está apresentado o primeiro problema: Se a massa magra inclui a medida de água corporal e se a Cr-s pode promover retenção hídrica, esse aumento da massa magra observada nos estudos anteriores não estaria refletindo um aumento da quantidade de água corporal ao invés da massa muscular?


Outro ponto que deve ser discutido é quanto ao método de avaliação. A DXA não possui boa correlação com alterações hipertróficas longitudinais quando comparado com modalidades de foco de imagem específico [8], como Ressonância Nuclear Magnética (RNM), Tomografia Computadorizada (TC) e Ultrassonografia (Usg), o padrão-ouro na avaliação da massa muscular [9].


Com efeito, se o método de avaliação utilizado nos estudos são imprecisos na avaliação da quantidade de massa muscular, como saber a real eficácia da suplementação com creatina na hipertrofia muscular?


Foi com base nesses problemas que uma revisão-sistemática, publicada em Abril de 2023, liderada por Brad Schoenfeld, uma das maiores autoridades mundiais quando se fala em hipertrofia muscular, deu sua contribuição ao assunto [10].


Do Estudo

Nesse estudo foram revisados 10 artigos, incluídos de acordo com os seguintes critérios:


- Foi investigado os efeitos longitudinais da suplementação com creatina combinado com TR comparado com TR sem suplementação;

- De duração maior de 6 semanas;

- Realizado com adultos (> 18 anos);

- Seus dados foram coletados antes e depois da intervenção proposta sob análise de métodos específicos de área de secção transversa (AST), como RNM, TC e Usg.


Desse modo, mais de 350 participantes foram avaliados, incluindo jovens, idosos, homens, mulheres, treinados e não-treinados. Em resumo, os autores concluíram que a suplementação com creatina melhora hipertrofia muscular esquelética regional quando combinado com TR. Entretanto, comparado ao placebo, a magnitude desse efeito foi de trivial a pequena, observando ganho extra de 0,10 a 0,16 cm para os extensores e flexores de cotovelo, respectivamente; e completaram:

"Desse modo, a significância e implicação práticas disso a nível individual parecem ser pequenas".

Opinião

Seja bem-vindo (a) ao mundo científico! Os estudos com seus respectivos métodos apontam a evidências e levantam dados que, não raro, são interpretados e/ou extrapolados erroneamente. Com efeito, como podemos considerar esse novo estudo, não descartando, evidentemente, os dados e evidências anteriores?


Primeiramente, esse estudo deve ser interpretado com muita cautela, uma vez que foi a primeira meta-análise a avaliar as mudanças regionais musculares na associação da Cr-s e TR. Outro ponto a se considerar é que, apesar de sua relevância, essa revisão não é isenta de limitações. Destacam-se 1) apenas um dos estudos incluídos nessa análise foi feito com mulheres, e sabemos que a resposta entre os sexos são diferentes; 2) apenas dois dos estudos tiveram participantes com experiência em TR, pessoas essas que por terem maior capacidade de treino podem se beneficar mais com a Cr-s; e 3) não houve delineamento adequado entre "respondedores" e "não-respondedores".


Portanto, não é possível, ainda, fazer recomendações gerais sobre o tema, necessitando, para isso, a realização de novos estudos. Pode-se sugerir, porém, que o impacto direto da Cr-s na hipertrofia muscular seja menor do que antes se imaginava ou erroneamente se afirmava.


Na prática, o que muda é a relevância que se dava à disponibilidade financeira individual, colocando-a em um patamar mais elevado. Em outras palavras, por muitas pessoas acreditarem no evidente benefício de sua suplementação na hipertrofia muscular, pouca importância era dado aos recursos financeiros do paciente. Com essa nova evidência, no entanto, aumenta a necessidade de ao menos colocar o assunto em pauta durante a consulta.


Em resumo, podemos interpretar o estudo e aplicá-lo na prática da seguinte maneira. Sabendo que existem:


1- indivíduos "respondedores" e "não-respondedores" à Cr-s, e que ainda não foram realizados bons estudos com esse delineamento;

2- pessoas com condições financeiras diferentes;

3- outros fatores que influenciam indiretamente na hipertrofia muscular e são melhorados com a Cr-s, como a força muscular [11].


Pode-se concluir que indivíduos com recursos limitados não têm a necessidade, como antes se acreditava, de suplementar-se com creatina, visto seu sugestivo baixo impacto na hipertrofia muscular apresentado nessa revisão. Por outro lado, pensando na possibilidade de classificação do indivíduo como "respondedor", e que mesmo o baixo impacto seja relevante a ele, aqueles que têm maior disponibilidade financeira, talvez seja válida a suplementação.


Outro grupo de pessoas que talvez se beneficiem da Cr-s são pessoas que estão em processo de emagrecimento, o qual a preservação da massa muscular é importante e pode ser facilitada com utilização de substâncias de efeito anti-catabólico, como a creatina. Mas isso é um assunto para outro artigo.

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