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Foto do escritorDr. Eduardo Fidelis

Zonas Azuis: O Mito da Longevidade

Recentemente, o conceito de "zonas azuis" ganhou destaque mundial ao promover certas regiões como centros de longevidade excepcional, onde as pessoas supostamente vivem mais e melhor devido a uma combinação de fatores culturais, dietéticos e sociais. As zonas azuis incluem Okinawa (Japão), Sardenha (Itália), Loma Linda (Estados Unidos), Icaria (Grécia) e Nicoya (Costa Rica). Afirma-se que os habitantes dessas regiões compartilham características como dietas ricas em vegetais e leguminosas, práticas regulares de atividades físicas, uma forte rede social e um propósito de vida claro, fatores que supostamente contribuem para a expectativa de vida acima da média dessas populações. A popularidade do conceito levou ao surgimento da "Blue Zones" como uma marca comercial registrada, que vende cursos, livros de culinária e produtos alimentares, prometendo um estilo de vida mais saudável e longevo.


No entanto, um artigo publicado por André Biernath, na BBC News Brasil em 10/10/2024, coloca em dúvida praticamente tudo o que se ouviu dizer sobre as "zonas azuis", desafiando a validade dos dados e das promessas atribuídas a elas. O artigo é baseado nas investigações do demógrafo Saul Newman, um pesquisador do Centro de Pesquisa Longitudinal da University College London, que analisou a validade dos dados sobre a longevidade nessas regiões. As principais críticas de Newman incluem inconsistências nos registros de idade, falta de evidências científicas robustas e um exagero na comercialização dos benefícios dessas regiões. A análise a seguir se propõe a avaliar os pontos apresentados no artigo, trazendo à luz questões fundamentais sobre os dados e interpretações que cercam essas supostas regiões de longevidade extraordinária.


A Fragilidade dos Dados sobre a Longevidade

O artigo destaca a fragilidade dos registros de nascimento e de óbito nas zonas azuis. Como apontado pelo demógrafo Saul Newman, muitas dessas regiões carecem de registros oficiais confiáveis que comprovem a idade dos supercentenários, como é o caso de Okinawa, no Japão, onde 82% dos cidadãos que supostamente passaram dos 100 anos já estavam mortos há tempos, sem que o óbito fosse devidamente registrado. Essa falta de precisão é uma crítica central que enfraquece a legitimidade dos dados das zonas azuis, tornando a narrativa da longevidade menos sólida do que se imagina.


Essa inconsistência também é verificada em outras zonas azuis, como Icaria, na Grécia, e Nicoya, na Costa Rica, onde se observam problemas com a precisão dos registros etários. Na Grécia, por exemplo, Newman aponta que 72% dos supostos centenários já estão mortos, desaparecidos ou são casos de fraudes da previdência. Esses dados indicam que, muito mais do que um fenômeno de longevidade admirável, as zonas azuis podem refletir deficiências na gestão documental e nas estruturas burocráticas dessas regiões.


Desconexão entre Estilo de Vida e Expectativa de Vida

Outro ponto essencial levantado é a desconexão entre os hábitos supostamente saudáveis das zonas azuis e a realidade dos dados de saúde e longevidade. A narrativa que envolve as zonas azuis é frequentemente baseada em uma visão romantizada de vida comunitária, dieta balanceada e forte conexão social, mas, segundo Newman, a situação é bem diferente. Em Okinawa, por exemplo, os índices de consumo de vegetais são baixos, a dieta é rica em carne e a taxa de suicídio entre idosos é preocupantemente alta. Esses elementos contrastam com a imagem idealizada que é amplamente divulgada.


A situação se repete em outras zonas azuis, como Loma Linda, nos Estados Unidos, que ocupa uma posição nada impressionante em termos de expectativa de vida em comparação a outras regiões americanas. Essas observações indicam que as zonas azuis não são tão excepcionais como são frequentemente apresentadas, e a longevidade observada pode ser resultado mais de inconsistências nos dados do que de hábitos de vida específicos.


Crítica à Comercialização das Zonas Azuis

O artigo também critica a comercialização das zonas azuis, que se tornaram uma marca registrada, com produtos e serviços que prometem promover longevidade, como cremes, livros e cursos. O fato de a empresa por trás das zonas azuis não ter respondido à solicitação de posicionamento da BBC News Brasil é um ponto relevante que sugere falta de transparência e, possivelmente, um foco maior no lucro do que na ciência ou na saúde da população. Saul Newman aponta que a ideia das zonas azuis é uma construção lucrativa que se alimenta da esperança das pessoas de encontrar soluções fáceis para problemas complexos, como a longevidade.


A crítica é que essa narrativa utiliza elementos que vendem bem ao público ocidental, como azeite de oliva, peixes e vida comunitária, ao mesmo tempo que exclui aspectos culturais e dietéticos que não se encaixam na ideia idealizada de saúde. Essa seleção parcial dos dados é um exemplo de como a retórica pode ser utilizada para criar um discurso que não necessariamente corresponde à realidade.


O Ceticismo Saudável e Análise Crítica

A análise de Newman — e relatada por André Biernath — sugere que a ideia das zonas azuis é essencialmente um mito bem comercializado, que se beneficia da falta de ceticismo tanto da comunidade científica quanto do público em geral. Embora não se possa negar que uma dieta equilibrada, a prática de atividades físicas regulares e a vida em comunidade possam trazer benefícios à saúde, os dados apresentados indicam que as zonas azuis estão longe de serem regiões mágicas onde as pessoas naturalmente atingem idades avançadas.


O estudo levanta questionamentos sobre a importância de avaliar criticamente as fontes de informação e de não aceitar narrativas simplistas sem verificação adequada dos dados. A realidade da longevidade é muito mais complexa do que a promessa de um "leite com cúrcuma" ou de um "milagre mediterrâneo". Assim, é essencial que a ciência e o público permaneçam vigilantes e céticos em relação a qualquer narrativa que apresente soluções fáceis para questões tão complexas quanto a longevidade e a saúde.

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